quarta-feira, 1 de abril de 2009

os gatos de alhambra

Tão nítidos ainda, os olhos
dos gatos que cirandavam,
há tantos anos, nos jardins
fronteiros ao Alhambra.
Gatos livres, gatos imundos,
gatos quase selvagens.
Lembro-me da forma elíptica
como caminhavam rente aos
muros, como se enovelavam
no meio da vegetação ou se
escapuliam debaixo dos
automóveis com matrícula
estrangeira. Aqui e ali,
junto a latas de conserva,
densas aglomerações felinas.
Corpos em magma, ondulações
de pêlo crespo, um furor de
cabeças esfomeadas. E eu,
criança, a ver o espectáculo
da natureza, um brilho talvez
maligno em olhos tão animais.

Agora queria escrever um poema
sobre o palácio mas não consigo.
Estão dentro da minha cabeça
as imagens: mosaicos geométricos,
arcos, fontes, o céu de Granada
dos versos de Lorca e aquele
complexo labirinto de sombras
que deu um novo sentido à ideia
de frescura. Queria escrever sobre
Alhambra mas não consigo. Porque
os gatos que cirandavam nos jardins
fronteiros intrometeram-se. A sua
nitidez desfoca tudo o resto. Nada
resiste à distorção daquele caminhar
elíptico. Afogam-se, palácio e cidade,
no brumoso segundo plano.

História de um eclipse: tantos anos
depois, são os gatos de Alhambra
que vêm, devagar, contra a minha
vontade, acender este poema.

José Mário Silva

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