quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Os dois gatos

Dois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria).

De um deles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.

Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.

Miou, e lambeu-o aquele
Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.

Aguda unha vibrando
Lhe diz: ''Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo, opulento, e nobre?

Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas?

Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.

Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto
Basta-me olhar para ti.''

''Ui!" (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
"És mais que eu? Que distinção
Pôs em nós a Natureza?

Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar.''
''Nada" (acode o cavalheiro)
"Eu não costumo brigar.''

''Então" (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
"Se tu não és mais valente,
Em que és sup'rior a mim?

Tu não mias?'' - ''Mio.'' - ''E sentes
Gosto em pilhar algum rato?''
''Sim.'' - "E o comes?'' - ''Oh! Se como!...''
''Logo não passas de um gato.

Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura.''

Bocage

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